Thursday, December 10, 2015

Frango no pato, pato no peru


Frango no Pato, Pato no Peru

Recentemente estive em Washington, nos Estados Unidos de Norteamérica, fazendo escala a caminho de Maceió vindo de uma reunião perto de Detroit. O retorno foi muito ruim, marcado pelo atraso e o mau atendimento da companhia aérea, mas me  deparou uma companhia inesperada e iluminadora.

No ônibus do hotel até o aeroporto não tive como não escutar a conversa de três jovens adultos latinos. A primeira coisa que chamou minha atenção foi o sotaque centroamericano do seu espanhol, e a quase ausência deste no seu inglês. Mais surpreendente ainda me resultou a forma em que falavam, misturando uma e outra língua de forma quase caricatural. O que acabou sendo fascinante não foi uma coisa nem a outra, mas o conteúdo dessa conversa que não se estendeu por mais de quinze minutos, mas que me atrapou.

Eles se sentaram já debatendo receitas de peru, suponho eu que pela proximidade do dia de Ação de Graças. Muito organizadamente, começaram pela melhor forma de preparar asas. Após alguns candidatos, reinou unânime a receita que consistia em primeiro assar para depois fritar as extremidades superiores das aves. A medida do sucesso de cada receita parecia ser a admiração (não sei dizer se factual ou meramente potencial) entre vizinhos e familiares, aferida pelas quantidades envolvidas (“unas cien wings tú preparas en dos horitas y te las devoran y te aplauden”).

Dado como eu sou, confesso, à boa mesa (ou à muita mesa, dizem alguns detratores próximos), a conversa prendeu minha atenção. Reparei então nas avantajadas dimensões horizontais dos três entusiastas do peru, duas mulheres e um homem, e na escassa projeção vertical. Os três eram bem, digamos, arredondados. Em uma emergência, seria mais fácil pular por cima do que contorná-los.

Alcançada a unanimidade com o preparo das wings, o tema passou a ser o recheio. Os legumes reinaram por alguns quilómetros (fazia frio, e o tempo ia ficando assustadoramente nublado para quem ia embarcar em um vôo que estava saindo com um dia de atraso), sempre que fossem dourados fartamente em manteiga. Foi nesse ponto que comecei ter alucinações olfativas, pois senti claramente o delicado cheiro de vagens preparadas dessa forma admirável.

O assunto não sucitou grandes divergências, e o foco mudou. O único homem do trio lembrou que rechear o pavo com algum tipo de carne é uma grande contribuição latina à culinária americana. Houve concordância imediata. E silêncio. E as nuvens ficaram mais escuras.

A calmaria foi quebrada por uma epifania culinária. Uma das moças perguntou ao grupo, praticamente letárgico nessa altura da viagem culinária, se conheciam o peru com triplo recheio. Sem esperar as respostas, ela prontamente explicou que se tratava de rechear um frango com legumes fritos na manteiga, colocar o frango dentro de um pato, e o pato dentro do peru. A monstruosidade estaria então pronta para ser cozinhada muito lentamente no forno por, pelo menos, oito horas.

Logo depois, quando ainda ecoava a receita no ônibus, chegamos ao aeroporto. Nos separamos sem despedidas (nunca fomos apresentados), e fiquei com a imagem da última receita firmemente perfilada na minha imaginação. Não reparei no tempo. As oito horas de espera foram apenas suficientes para me desfazer dessa indigesta lembrança.

Pensei, então, até onde se chega nessa cultura de saciedade. Uma receita desse calibre só pode ser explicada pela fartura excessiva e pela necessidade de impressionar paladares embotados. Chamo isso "cultura da saciedade", quando não há necessidade de disputar por recursos que, para outros, são escassos e preciosos.

Imaginei essa denominação há alguns anos, quando uma colega insistia em pedir no seu projeto de pesquisa recursos para adquirir um software caro. Eu perguntei o motivo para tamanha despesa, sendo que havia opções computacionalmente melhores, e gratuitas. Ela respondeu rapidamente, e com pouca paciência para debater o assunto, que o fazia "porque podia, e ponto". Em projeto alheio não se dá palpite, a não ser que seja pedido por triplicado e com assinatura registrada em cartório, então optei por um prudente silêncio que preservou a amizade por algum tempo.

Essa cultura da saciedade sempre me incomodou, e me incomoda mais ainda desde que trabalho em uma Universidade em que cada centavo precisa ser arduamente conquistado. E é da condução dessa Universidade Federal de Alagoas que terei oportunidade de participar graças ao gentil convite da Profa. Valéria e do Prof. Vieira, vitoriosos na última eleição para Reitora e Vice-reitor. Os tempos que se avizinham serão impiedosos, e uma cultura de trabalho, ponderação, sensatez, equilíbrio e economia será fundamental. Espero poder contribuir nesse sentido.